Baaria é épico monumental sobre a história da Sicília


Baaria é épico monumental sobre a história da Sicília“Baaria – A Porta do Vento” é um épico monumental, em termos de produção e escopo narrativo, de Giuseppe Tornatore, que aborda a história de um camponês da Sicilia, desde o início do regime fascista até os anos 70.

Baaria é épico monumental sobre a história da SicíliaA trajetória do protagonista Peppino Torrenuova (Francesco Scianna), provavelmente inspirado no próprio pai do diretor, serve de fio condutor para uma série de episódios em que o autor de “Cinema Paradiso” (1988) revela a sua visão acerca daquele período e de sua cidade natal: a siciliana Bagheria.

Um pouco como Fellini em em “Amarcord” (1973), o cineasta deixa que a memória seja contaminada pela fantasia e pelo impulso poético, com resultados magnificados pela música de Ennio Morricone.

Baaria é épico monumental sobre a história da SicíliaO personagem central é um camponês “de dentes fortes e cérebro nem tanto”. Especialmente belo e saudável, ele desenvolve força de vontade e firmeza ideológica, mas não demonstra queda para os estudos e permanece um semi-analfabeto. Faz uma carreira impecável dentro do Partido Comunista, sem qualquer revisionismo ou tramóia e também (ou por isso mesmo) sem nenhuma vitória eleitoral. Com uma única esposa, criou 5 filhos, sendo um deles tão apaixonado por cinema que colecionava fotogramas, como se fossem figurinhas.

Algumas cenas merecem atenção especial. Primeiro a gigantesca elipse em que o protagonista, quando menino, fica de castigo na sala de aula e pega no sono para despertar mais de meio século depois. Caminha atônito pela Bagheria moderna e se pergunta se estava no passado sonhando com o presente, ou vice-versa. Mais que salientar o descompasso entre as épocas, essa operação de montagem nos diz que, mesmo com a inexorável passagem das décadas, o personagem se mantinha ingênuo e cristalino do mesmo jeito que era quando criança.

Baaria é épico monumental sobre a história da SicíliaA cena do vendedor de linguiça oferecendo a sua mercadoria enquanto caminhava atrás do líder fascista local é igualmente memorável. A dois passos do “camisa negra” que marcha pela rua principal sob os olhares de todos, o comerciante ergue o produto, gritando: “é puro porco!” Assim, faz marketing para os partidários de Mussolini, ao mesmo tempo que os ridiculariza, para os adversários.

Seguindo a antiga lição de Sergei Eisenstein, por meio da justaposição de representações diversas, Tornatore cria imagens de caráter de alta densidade simbólica e carga emotiva. Vejamos, por exemplo, como ele nos diz que o povo siciliano é marcado pela obrigação e pela capacidade de esperar.

Baaria é épico monumental sobre a história da SicíliaNuma sequência, o pai do protagonista permanece vivo, mesmo contra a expectativa dos médicos, enquanto o filho não chega para se despedir dele. E mais adiante, enquanto ocorre uma passeata de protesto no centro da cidade, a câmara mostra duas mulheres em frente às suas casas. Uma ao lado da outra, esperam tensas e em silêcio por seus maridos: um é da polícia e ou outro é militante comunista. Um deles, ou dos dois voltarão machucados, ou nem voltarão.

A majestosa música sinfônica de Ennio Moricone se articula organicamente às dimensões épicas do filme, em que os planos mais abertos correspondem aos acordes mais intensos e conclusivos das sequencias. De resto, a própria musicalidade da fala siciliana se encarrega de colorir de ritmos e melodias a trilha sonora.

Como ilustração, note-se o pregão do comprador de dólares, pontuando a narrativa com seu grito, nos momentos mais inadequados. E a cena em que o orador comunista vai declamando o seu discurso ensaiado e, a cada parada permitida pelas palmas, pede “água!” Feita com o rosto sempre voltado para o microfone, essa solicitação é também amplificada para o público. De modo que, quando ele repete o pedido pela terceira vez, é a platéia em coro que grita “água!” Pode parecer apenas uma piadinha que empregou milhares de figurantes para ser mostrada, mas a gag exprime com perfeição e ênfase o senso crítico da sensibilidade de todo um povo.

Baaria é épico monumental sobre a história da SicíliaFiz uma pergunta a Tornatore, que esteve recentemente em São Paulo para divulgar o filme, tentando decifrar um símbolo visual que aparece na última cena: um menino tem o seu pião quebrado ao meio numa disputa, mas, de seu interior surge uma feliz surpresa.

Felizmente para minha auto-estima, ele respondeu favoravelmente à minha análise: “A sua interpretação está correta. O filme de fato se concentra numa história de paixão e entrega à vida que parece ser a de um perdedor. Apenas parece, porque o protagonista é na realidade alguém que fracassa no aspecto público de sua trajetória, mas triunfa plenamente em termos pessoais. Você leu muito bem o que o filme diz”.

Baaria – Portal do Vento

Escrito por Luciano Ramos. Luciano Ramos é escritor, crítico de cinema e professor dos cursos de pós-graduação da FAAP. Escreveu as minisséries “Avenida Paulista” e “Moinhos de Vento”, além da novela “Champanhe” da Rede Globo, dirigiu o Departamento de cinema da Rede Bandeirantes, editou o “Guia de Filmes e Vídeo” da Editora Nova Cultural, é autor do livro autor do livro “Os Melhores Filmes Novos” (Editora Contexto, 2009) e apresenta o programa Cinema Falado na Rádio USP.

Deixe um comentário