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Erros e omissões de 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer

Posted in Literatura with tags , , , on 30/01/2011 by Ilhota Rock Festival

Capa do livro "1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer"A essa altura, a gelar roqueira já conhecem o livro 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer. Lançado em 2008 no Brasil pela Editora Sextante, o livro, um sucesso de vendas, fez a cabeça de muita gente e abriu as portas para uma avalanche de guias semelhantes que cobrem outras áreas.

1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer, por Zeca Azevedo

Em uma época de informação abundante e corrente como a que vivemos, um livro dessa natureza pode parecer um anacronismo, mas o fato é que esse tipo de publicação é muito valorizado justamente por propor ao leitor algum tipo de ordenação do excesso de informação circulante. Para quem é bem jovem e está começando a explorar a esfera musical agora e para quem já tem uma certa idade, mas nunca teve tempo de se informar adequadamente sobre música, o livro parece um maná. Se na época em que comecei a me interessar de verdade por música (aos onze anos de idade) eu encontrasse um livro dessa natureza, ficaria bem feliz. Creio que para os neófitos o livro é benéfico, mas para pessoas adultas, que já tiveram oportunidade de formar uma opinião sobre os fatos do mundo, 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer revela rapidamente as falhas de caráter que possui.

Interior do livro "1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer"A primeira falha, a Marca de Caim do livro, está na imagem escolhida para a capa. Sid Vicious, o baixista dos Sex Pistols, prematuramente falecido, aparece apontando o braço do seu baixo para o espectador como se fosse uma arma. A foto é ótima, Sid é uma figura importante na história do pop, mas há um porém: o livro é sobre discos, sobre registros fonográficos. O único disco listado pelo livro em que Sid aparece é o antológico Never Mind the Bollocks, Here’s the Sex Pistols, de 1977. Todo mundo sabe (os responsáveis pela publicação certamente sabem) que a participação de Sid Vicious no Never Mind the Bollocks… é mínima, quase irrisória; quem trabalhou de verdade no álbum foi o Glen Matlock, o primeiro baixista do grupo. Por que então a imagem do Sid, que nunca foi conhecido por seus dotes musicais e sim pela imagem e pela atitude, está na capa de um livro que procura selecionar discos essenciais das últimas cinco décadas? Porque a imagem registra a origem cultural e os valores estéticos mais profundos que quem fez o livro. Movimentos de câmera são naturalmente excludentes e ideológicos, já dizia Godard. Se queriam uma imagem do punk ou mesmo dos Pistols, porque não cataram uma do Johnny Rotten? Seria mais representativa, até porque o velho Lydon também foi o cabeça do Public Image Ltd., grupo que tem não um, mas dois discos tidos como essenciais pelo livro (o primeiro, Public Image, e o segundo, Metal Box).

A seleção equivocada da imagem da capa é um prenúncio do que se encontra nas quase mil páginas de 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer. Os autores do livro omitem obras tão ou mais importantes do que as relacionadas pela publicação. Isso sem falar nos erros de informação, como o que diz que o Leon Ware participou do álbum Let’s Get In On do Marvin Gaye. Ware trabalhou como co-produtor, compositor, arranjador e músico do disco I Want You, de 1975; o parceiro do Marvin no Let’s Get It On foi Ed Townsend, produtor, compositor e cantor excepcional. Foi o Ed Townsend o co-responsável pelo lado A de LP mais bonito de todos os tempos, as quatro primeiras faixas de Let’s Get It On. O disco todo é magnífico, mas o lado A é sublime.

Capa do livro "1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer"Entre erros de tradução (trocaram o sexo da flautista Bobbi Humphrey) e erros de seleção de álbuns essenciais, 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer tem 1001 utilidades e 1001 inutilidades. O maior problema que o livro apresenta está justamente na lista de álbuns que propõe como essenciais. Sabem vocês quantos discos de artistas negros fazem parte da lista? Menos de 200. Façam as contas: isso dá menos de 20% do total. A maioria absoluta dos álbuns listados é de artistas brancos e procedentes dos Estados Unidos e da Inglaterra. Não poderia ser de outro jeito, considerando a origem social e cultural de quem fez o livro. É isso que 1001 Discos Para Ouvir… registra com precisão, a música essencial para um tipo específico de ouvinte: branco, de classe média, nascido nos EUA ou na Europa. Há títulos de “world music” impressos no livro, mas são em número pequeno e também são aqueles títulos que vazaram, que conseguiram (com maior ou menor grau de dificuldade) penetrar a bolha da cultura pop sem estourá-la.

Capa do livro "1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer"Isso significa que a dieta musical proposta pelo livro não é “balanceada” como deveria. Já vi muita gente falar sobre 1001 Discos Para Ouvir… como se fosse uma espécie de bíblia, o que é uma verdadeira bobagem. O fato é que o livro informa E DESINFORMA. De minha parte, decidi fazer algo que não me agrada particularmente, mas que acho necessário: sugerir uma lista de discos de soul e de black music em geral que deveriam constar no livro. Não quero com isso dizer que sou uma autoridade epistemológica no assunto e que minhas escolhas serão inquestionáveis, mas quero, na medida da minha capacidade pessoal e da minha experiência de mais de trinta anos ouvindo e lendo sobre soul music e gêneros co-irmãos, contribuir para que algum eventual leitor de 1001 Discos Para Ouvir… possa abrir o leque de opções. Desde já peço as leitores que dêem dicas ou façam contribuições e críticas pelo e-mail tsop@terra.com.br.

Para começar, selecionei quatro álbuns de soul, funk e disco de artistas que não figuram no livro e que considero imprescindíveis. Em outros textos, ampliarei a lista.

The Supremes – The Supremes Sing Holland – Dozier-Holland (1967, Motown)

The Supremes - The Supremes Sing Holland – Dozier-Holland (1967, Motown)Entre os muitos lapsos de julgamento cometidos pelos responsáveis por 1001 Discos Para Ouvir…, um dos mais evidentes é a total ausência de álbuns das Supremes na lista. O trio feminino, o mais bem sucedido grupo do tipo da história, foi o motor da Motown nos anos 60. Ignorar os álbuns das Supremes não é só esnobar Diana Ross, Mary Wilson e Florence Ballard, é deixar de lado o melhor da produção do outro trio de ouro da gravadora de Detroit, Holland-Dozier-Holland. Suponho que as Supremes foram “esquecidas” porque os colaboradores do livro acreditam que o melhor do grupo se encontra em coletâneas (a seleção de discos é composta somente por álbuns originais, compilações ficaram de fora), mas eles estão enganados. Esse disco de 1967 reúne um punhado de canções magníficas produzidas com esmero por seus autores, os irmãos Brian e Eddie Holland e Lamont Dozier. A performance imaculada dos Funk Brothers e o vocal excitante e juvenil de Diana Ross (um modelo para muitos vocalistas de pop e de soul, incluindo aí Michael Jackson) só acrescenta qualidade a um repertório de canções perfeitas como o proto-funk “You Keep Me Hangin’ On”, a melancólica “Love Is Here and Now You’re Gone”, a gentil “Mother You, Smother You” e a intensa “Remove This Doubt” (gravada anos depois por Elvis Costello). Você sabe o que a expressão “pop perfeito” significa? Não? Então ouça The Supremes Sing Holland-Dozier-Holland e descubra.

Ann Peebles – I Can’t Stand the Rain (1974, Hi)

Os primeiros sons que emanam do disco emulam gotas de chuva e preparam o ouvinte para o que virá: vinte e oito minutos de música forte, emocional, encharcada de chuva, álcool, suor, lágrimas e de outros fluídos corporais. I Can’t Stand the Rain, obra-prima de Ann Peebles e da soul music, foi lançado em 1974 pela gravadora Hi de Memphis, a mesma que premiava o mundo com as gloriosas gravações de Al Green desde o finalzinho dos anos 60. Produto de uma época em que a música soul começava a perder terreno para uma de suas crias, a serelepe e debochada disco music, I Can’t Stand the Rain defende com bravura o campo da música passional. A canção título, o maior sucesso do álbum, mereceu inúmeras regravações, como a versão discothèque do grupo Eruption (que pertencia ao cast de Frank Farian, notório vigarista da cena pop, responsável pelo Boney M e pelo Milli Vanilli) e a de Tina Turner, incluída no megaplatinado e multipremiado LP Private Dancer de 1984, mas o fato é que a pungente versão original é insubstituível. Ladeada pelos músicos e pelo produtor (Willie Mitchell) que trabalhavam com Al Green nos anos 70, Ann Peebles poderia ter sido engolida pela comparação com o reverendo mais carismático de Memphis, mas triunfou com um repertório de arrasadoras canções de amor (que ela compôs em parceria com o marido Don Bryant, ele mesmo um excepcional cantor, e alguns colaboradores) e com uma voz a um só tempo áspera e doce, urgente e sábia. I Can’t Stand the Rain é o momento máximo da carreira de uma grande cantora que ainda está na ativa, para o gáudio dos fãs de soul do mundo inteiro.

Donny Hathaway – Donny Hathaway (1971, Atlantic)

Sinceramente, nunca consegui entender a baixa estima que grande parte dos praticantes do jornalismo musical tem pela discografia do Donny Hathaway. Nos anos 70, a obra de Donny Hathaway era encarada pelos críticos como “middle of the road”, como música comercial descartável. A suavidade dos arranjos urdidos por Hathaway, inspirada por Debussy, era percebida como “traição” à pureza do R&B e como concessão ao mercado. Por alguma razão não bem explicada, muitos críticos acreditavam que a música popular negra tinha que ser sempre “fiel às raízes”, não podia ser sofisticada e muito menos delicada. Mesmo hoje, quando Donny Hathaway é reconhecido por muitos como o pai da soul music moderna (ouve-se a influência dos vocais e da concepção musical de Donny no trabalho de Stevie Wonder, George Benson, Peabo Bryson, Ed Motta, Anthony Hamilton e de muitos outros artistas de black music dos últimos trinta anos ou mais), os álbuns que ele deixou ainda são largamente ignorados pelos autores dessas listas de “melhores de todos os tempos”. A omissão se repete no livro 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer. Trata-se de um erro tremendo, que precisa ser corrigido. A discografia autoral de Hathaway é pequena: ele deixou três álbuns solo de estúdio e um ao vivo, além de dois álbuns gravados em parceria com Roberta Flack (um deles lançado depois que o cantor cometeu suicídio em janeiro de 1979). Qualquer um dos LPs do cantor poderia figurar numa lista de melhores, mas eu escolhi o segundo, chamado simplesmente Donny Hathaway e lançado em 1971 pelo selo Atlantic. É um disco carregado de emoção e recheado de canções com acento gospel. Hathaway oferece ao ouvinte versões definitivas de “A Song for You” e “He Ain’t Heavy, He’s My Brother”, dois standards do pop, e de “Giving Up”, composição de Van McCoy que já havia sido registrada em vinil por Gladys Knight e os Pips. O autor da balada “Little Girl”, Billy Preston, chorou copiosamente quando ouviu pela primeira vez a interpretação de Hathaway. O álbum inteiro é capaz de induzir ouvintes ao choro emocionado. Ouvir Donny Hathaway, o LP, é uma experiência religiosa.

Donna Summer – I Remember Yesterday (1977, Oasis)

Donna Summer – I Remember Yesterday (1977, Oasis)Eu sei q

ue a discografia de Donna Summer oferece álbuns marcantes como Love to Love You Baby, Once Upon a Time e Bad Girls, mas é I Remember Yesterday que resume a proposta artística da cantora e dos produtores Giorgio Moroder e Pete Bellotte. Fazendo reverência ao som da Broadway da primeira metade do século XX na canção título ou ao Motown sound em Back in Love Again, o álbum reúne e cataloga os elementos que caracterizam a disco music. Mais do que o conceito, são as ótimas canções que cativam o ouvinte: “Can’t We Just Sit Down (And Talk it Over)” é uma das mais belas baladas do repertório de Donna Summer e “Love’s Unkind” e “Take Me” ainda são capazes de fazer uma pista de dança ferver. O melhor de I Remember Yesterday é, claro, a última faixa, a futurista “I Feel Love”, uma das mais importantes gravações dos últimos cinquenta anos. “I Feel Love” não apenas antecipou toda a dance music eletrônica (house e tecno), mas exerceu influência pesada e positiva sobre artistas de pop e de rock do mundo inteiro. Três décadas depois de lançada, “I Feel Love” continua moderna e excitante. O fato da lista apresentada por 1001 Discos Para Ouvir… não incluir um só disco de Donna Summer é um crime cultural. I Remember Yesterday, o álbum, e a voz de Donna Summer são itens que não devem ser descartados da formação musical de quem quer que seja.

Download

Aqueles que queiram fazer o “download” do livro, fique a vontade em clicar no link aqui em baixo, mas não recomendamos a somos contra a pirataria. O presidente do clube, Fernando Costa, possui um exemplar desse fascinante livro, e caso queira dar uma “lidinha”, peça-o emprestado!

Clique aqui para baixar

Chupado da rede!